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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Os Dependentes

Mais um texto pra começar bem o dia. Esse texto faz parte do espetáculo Todo Mundo Amplia a Paranóia que cria, que escrevi em 2001. E foi um dos textos que direcionaram as discussões bem humoradas sobre as relações modernas presentes no espetáculo. E, posso dizer, era um dos meus textos favoritos dessa época, porque, com certeza, tem muito do meu jeito de brincar de filosofar acerca de determinados temas. E como complemento desse texto, eu havia escrito um esquete chamado Os Sobreviventes para o mesmo espetáculo. Mas, na montagem final da primeira versão do espetáculo, acabou ficando de fora, devido ao fato de que eu não gostei muito do resultado do texto ao ser encenado. Mas, quem sabe, em breve, eu não o poste aqui. Fiquem agora com os Dependentes! 




OS DEPENDENTES, de Raul Franco

Personagens:  Lucrécio e Gastão. No final, Leila ao telefone.
                          Ambiente: Uma sala de estar.
                          Música: Todo mundo quer amor (Titãs).

Lucrécio está tentando demonstrar uma certa segurança de quem defenderá uma tese, nascida de árduas reflexões acerca do comportamento humano. Sentado numa cadeira está Gastão, lendo jornal. de repente, sua leitura é interrompida pela fala de Lucrécio.

LUCRÉCIO - Estou decidido!

(Gastão tira o jornal da frente de sua cara)

GASTÃO - Está falando comigo?
LUCRÉCIO - Estou falando com quem deseja escutar.
GASTÃO - Mas nesta sala só estou eu.
LUCRÉCIO - Então, você vai ser o destinatário de minhas mensagens.
GASTÃO - Ai, Lucrécio, quando você fala assim é porque vem mais um dos seus insights deslumbrantes.
LUCRÉCIO - Talvez, se você quiser chamar assim. Prefiro entender como uma perturbação poética.
GASTÃO - Dá pra tomar uma água primeiro, antes de começar a falação?
LUCRÉCIO - Esquece água, Gastão, e senta. Ouve, ouve. Presta atenção! Estou tomando uma decisão importante.
GASTÃO - Vai mudar de apartamento? Como eu vou fazer pra pagar o aluguel sozinho, Lucrécio? Tá louco?! Sinto muito, mas você não vai poder sair daqui agora.
LUCRÉCIO - Quando você vai aprender a não se antecipar antes de ouvir o que realmente uma pessoa está querendo falar? Já esqueceu que apressados comem cru? Você jamais daria um bom filósofo.
GASTÃO - Não faço questão. Prefiro continuar sendo um arquiteto. Mas, então, o que é que o grande Sócrates está querendo dizer?
LUCRÉCIO - Eu tomei uma decisão muito importante. Abdicarei da minha vida sexual por um tempo.

       (silêncio)

GASTÃO - É isso que você quer dizer pra mim, em plena sexta, quando o mundo está explodindo na gandaia aí fora? O que eu tenho a ver com isso? Lucrécio, a gente só divide o apartamento. A gente não transa.
LUCRÉCIO - Gastão, a questão é muito mais profunda. Amplia os horizontes. Você sabe que eu sempre fui um cara que tive relações sexuais constantes. Sempre tive mulheres fascinantes em minha vida. Mas quando fui parar pra ficar sozinho é que pude perceber o quanto a gente hipervaloriza o sexo. Eu não transo há um mês e vi que posso ficar muito mais tempo sem transar. Sexo não é tudo na vida.
GASTÃO - Parabéns pela descoberta. E o que eu posso fazer por você?
LUCRÉCIO - Quero que você me ouça apenas. Presta atenção no que eu vou te falar. Você já parou pra pensar no quanto o sexo, o ato sexual, está se banalizando? A gente vive rodeado de erotismo barato, o mundo respira sexo. Tudo é sexo. Sei que antes eu não parava pra pensar muito nisso. Eu também estava mais preocupado em comer alguém no fim de semana, comer alguém, entende? Eu possuía o mesmo desejo que todo adulto e macho possuía. Queremos comer as pessoas. E tudo ficou muito rápido, muito fácil. O próprio diálogo não existe mais. Tudo está muito assim: oi/oi; tudo bem?/ bem; tem uma camisinha?/ tenho; põe?/ ponho; (geme) ai, ui, hum, ahhh... foi bom pra você? Entende?
GASTÃO - Tô começando a entender. Mas me diz uma coisa, Luc, você não tá lendo muita filosofia, não? Nietzsche morreu louco, hein?
LUCRÉCIO - Amplia os horizontes, Gastão, amplia. Isso é um ponto de vista bombástico: todos só querem se comer.
GASTÃO - Agora vou ampliar os horizontes: pra começar, não é a gente que come. A gente é comido. A mulher é que tem a boca. Viu? Também filosofo.
LUCRÉCIO - Parabéns pela sua filosofia de botequin. Bem, mas como eu ia dizendo, acho que a gente vive muito em função do sexo. Essa obsessão do ser humano, essa febre de sexo, inclusive, está levando muitos a se tornarem dependentes. Veja bem: o que poderia nos libertar, está nos oprimindo. Estamos virando escravos do sexo.
GASTÃO - Será? Você não tá pegando muito pesado, não?
LUCRÉCIO - Por incrível que pareça, não. As indústrias do sexo estão aí, lucrando rios de dinheiro, produzindo perturbações sexuais nos indivíduos. É sexo por telefone, via internet, sexo com prostitutas, shows de streap-tease, uma série de bombardeamentos sexuais. E o nosso prazer, onde fica?
Todos de fora - Foi pras cucuias.
LUCRÉCIO - Você não vê essas deturpações sexuais nos nossos dias?
GASTÃO - Sei lá. De repente, vejo, mas ainda não abri os olhos. Quem sabe, eu não esteja também com esta febre de sexo. Muitas vezes já saí de madrugada, louco pra dar uma boa trepada.
LUCRÉCIO - Querendo aquele ciclo do: oi/oi; tudo bem?/ bem; tem uma camisinha?/ tenho; põe?/ponho; ai, ui, hum, ahhh... foi bom pra você? Todos só buscam isso, Gastão.
GASTÃO - Podes crer, Luc. Radiografou as relações.
LUCRÉCIO - Pois é, meu caro, caímos na grande armadilha que o sistema capitalista coloca pra gente: a  escravidão que é escamoteada com uma aparente sensação de liberdade. Às vezes, a gente acha que está se libertando, quando estamos nos encarcerando. Mas isso ia acontecer um dia. (começa a acelerar no raciocínio) Na década de 70, não aconteceu toda uma liberação sexual? Todos transavam com todos, e era o máximo. Bi-sexualismo era a regra. A década de 80 teve um certo freio em função da AIDS. O medo norteava o ato. Tivemos que aprender a transar com camisinha. E a década de 90 foi um hiato, um momento de se pensar em tudo que tinha acontecido em relação ao sexo, por isso se proliferou a indústria do sexo, que se torna mais masturbatório do que carnal. Percebe?
GASTÃO - Sabe que ouvindo você falar, eu tenho uma certa impressão de estar ouvindo o Caetano Veloso complexificando o que poderia ser dito de forma simples. Luc, você é um ótimo Caetano sem sotaque.
LUCRÉCIO - Isso é um elogio ou uma ofensa?
GASTÃO - O que você quiser, querido. O filósofo do caos pós-moderno é você. Você é quem me fala da importância de complexificar pra depois simplificar. Daqui a pouco, quando a gente for curtir uma ondinha, fazer uma viagem, você não vai mais me pedir um baseadinho, vai pedir: me vê um “delta-9-tetrahidrocannabinol”. Aí eu só vou responder: porra, o cara viaja. Mas é isso, cada um amplia o horizonte que tem. 
LUCRÉCIO - Cada um amplia a paranóia que cria. O sexo ‘tá na cabeça. E a gente, às vezes, vive muito em função dele. No fundo, somos os grandes culpados. Nossas frustrações sexuais é que geram todo esse Universo de erotismo exacerbado e desenfreado. Você acha que uma mulher ou um homem se vestem com roupinhas bem coladinhas num fim de semana pra quê? É sexo! Todos querem despertar a libido do outro. A embalagem de um desodorante é sexo. Todo aquele formato cilíndrico, aquele aspecto roliço é para lembrar o nosso órgão sexual. O gozo é na hora que a pessoa aperta o tubo no sovaco: shhhh. 
GASTÃO - Nunca tinha pensado nisso. Até o desodorante, Luc! Quer dizer que o que eu faço é dar uma gozada no sovaco? Podes crer!
LUCRÉCIO - É, mas nem todos têm coragem pra abdicar da vida sexual, nem que seja pra buscarem um certo controle da mente e do corpo. Devíamos todos fazer um excursão ao Tibet. Devíamos meditar porque todos estão muito cegos, embarcando nessa nau do sexo. Terei pena quando eles naufragarem no lodaçal criado por eles mesmos. (suspiro) É, meu amigo, já me sinto melhor, depois do meu orgasmo filosofal. Agora preciso ir para o quarto, os abstêmios dormem cedo, como anjos sem culpas. Good night, meu caro.
GASTÃO - Não vai sair hoje?
LUCRÉCIO - Também já estou fora desta obsessão urbanóide de ser obrigado a sair numa sexta-feira à noite. Deixo isso pra você. (indo para o quarto)
GASTÃO - (sozinho) Ou o cara tá louco ou isso é uma excessiva sobriedade. Também pra quê sair na sexta à noite se ele não quer transar mais? Com certeza, ele vai jogar as suas roupas coladinhas fora. Até passou a minha sede. (senta pra ler jornal) Porra, minhas idéias estão todas perturbadas que eu nem consigo mais ler esse jornal. 

       (Toca o telefone. Leila, namorada de Gastão, está do outro lado da linha)

GASTÃO - Alô?
LEILA - Amor, tô te esperando até agora. Você não disse que ia ligar pra gente sair?
GASTÃO - É que eu tava refletindo.
LEILA - Refletindo em plena sexta, Gastão? Hoje é dia de cair na night.
GASTÃO - Nossa, que antítese chocante.
LEILA - Antí... o quê?
GASTÃO - Antítese: dia e night. Sacou?
LEILA - Continuo nas nuvens, paixão.
GASTÃO - Deixa pra lá. Afinal, a gente namora, não defende tese, não é mesmo?
LEILA - Olha, já separei aquele vestidinho vermelho que você adora. E vou colocar também um batom com sabor de hortelã só pra você tirar.
GASTÃO - ‘Cê tá inspirada, hein, Leila?
LEILA - Você que disse pra eu ficar bem sensual hoje. Tô pronta pro que der e vier.
GASTÃO - Pois é, Leila, esse é o problema. Você tá sempre pronta pro que der e vier. Sabe por quê? (começa a falar de forma acelerada, como um discurso decorado semelhante ao modo como Lucrécio fala) Porque você tá meio escrava dessa obsessão sedutora. Você ainda tá presa nesse fetiche, nessa tendência paranóica de representar mulheres fatais, repletas de batons e roupas que cheiram a um erotismo forjado e patrocinado pelas indústrias da pornografia. Sacou?
LEILA - Ai, será que eu liguei pro Caetano Veloso?
GASTÃO - Eu acho que a nossa relação ainda tá muito pautada no sexo. Existem outras coisas além do sexo. Precisamos olhar além, senão tudo vai se resumir na repetição mecânica e ininterrupta do ciclo do: oi/oi; tudo bem?/bem; tem uma camisinha?/tenho; põe?/ponho; ai, ui, hum, ahhh... foi bom pra você?
LEILA - O que é isso, Gastão?
GASTÃO - É a escravidão, meu amor. Você ainda está embarcando cega nessa nau do sexo.
LEILA - O quê? Você quer anal no sexo? Mas dói muito.
GASTÃO - Olha, vai dormir, Leila, que amanhã eu vou providenciar uma excursão sua para o Tibet. Tá bom? Boa noite!

       Som em off.: puuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.


FIM

2 comentários:

  1. Muito bom esse texto....aliás, esse e todos que eu leio!
    Sou seu fã de carteirinha!
    Parabéns, Raul Franco!!!

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  2. valeu pelo carinho!

    abraços, Raul Franco

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