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quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Julgamento do mau ator

Finalmente de volta ao meu blog Entrelinhas. Confesso que estava com saudade. E hoje volto com um texto que gosto muito. Semana que vem nos vemos de novo (ou não - risos).

O JULGAMENTO DO MAU ATOR – de Raul Franco

Voz em off: Enquanto isso, no Tribunal de Justiça, acontece o julgamento de uma importante figura da atualidade, um ícone dos nossos tempos: Marcos Resteler. E, é claro, por se tratar de uma estrela da mídia, todo o julgamento será transmitido em cadeia nacional, agora, nesse momento. NO AR: O Julgamento.

Abre-se um foco na cara do ator modelo que está tenso. Música tensa. Aos poucos, vai-se iluminando o palco todo. E logo encontramos o juiz que dará início ao interrogatório.

Juiz – Então, aqui está Marcos Resteler, 25 anos, solteiro e praticante de esportes. Ah, antes de mais nada, vale ressaltar que a sua profissão anterior era modelo. Mais um modelo que quis virar ator...
Marcos – Não é bem assim, é que...
Juiz – Por favor, não me interrompa. Deixa eu terminar o meu bife. Pois bem, quer dizer que você quis virar ator? Até aí tudo bem. Mas começar como amigo do protagonista da novela das oito? Você não começou muito em evidência, não? Será que você em nenhum momento pensou que não tinha competência para isso? Será que você não se envergonha de invadir os lares brasileiros todos os dias com uma interpretação medíocre? Você acha que só porque sabe falar pode ser ator? Hein? Hein? Agora pode falar.
Marcos – (com uma dicção péssima) Bem, na verdade, eu não sabia que a coisa era assim tão difícil...
Juiz – O que é que você disse?
Marcos – Eu disse que eu não pensava que fosse tão difícil ser ator...
Juiz – Nossa! Que dicção é essa? Nem falar você sabe, meu filho. Olha, vê se pega o kit que está aí perto de sua cadeira. (Marcos pega o kit) Por favor, tire a rolha e coloque na boca.
Marcos – O quê?
Juiz – A rolha! Pegue a rolha e coloque na boca.
Marcos – Pra quê?
Juiz – Pra articular melhor, meu filho.
Marcos – Ah... (coloca a rolha na boca)
Juiz – Agora diga o que você falou anteriormente.
Marcos – (com a rolha) Eu disse que eu não pensava que atuar era assim tão difícil.
Juiz – Mesmo assim resolveu aceitar o convite para ser ator?
Marcos – Eu sou um batalhador.
Juiz – Batalhador o escambau. Vamos ser transparentes, o que eu quero saber mesmo é quem foi o culpado de colocar você dentro do núcleo principal da novela das oito? Porque, no fundo, você não tem culpa. Você é apenas o bode expiatório de toda essa mamata que beneficia jovens sem talento.
Marcos – Mas eu sou bonito.
Juiz – Beleza não põe mesa.
Marcos – Eu sei.
Juiz – Então, reflita e responda conscientemente sobre os fatos. Não estou aqui para ladainhas. Pela última vez diga quem colocou você na novela das oito?
Marcos – Eu não sei. (cai a rolha) Eu caí de pára-quedas.
Juiz – Você caiu muito mal. E o que é pior: em um pântano cheio de crocodilos famintos.
Marcos – Não entendi a metáfora.
Juiz – Você é um bode expiatório.
Marcos – Eu sou um ator.
Juiz – Você é um oportunista. Você não é ator nem aqui nem na China. Você já fez teatro?
Marcos – Eu vou ao teatro.
Juiz – E eu vou a concertos e nem por isso subo ao palco para tocar piano. Percebe?
Marcos – Você tem razão.
Juiz – E você não tem talento. Talento... Sabe o que é isso? Você não tem técnica, você não tem nada.
Marcos – (quase chorando) Eu tenho força de vontade.
Juiz – E a gente tem que ter paciência para aturar um canastrão como você?
Marcos – Eu me esforço... Eu decoro os textos que me dão.
Juiz – Ai, meu Deus, dai-me paciência com a mediocridade. VOCÊ NÃO É ATOR!!!
Marcos – Eu não tenho culpa.
Juiz – E a culpa é de quem?

Marcos faz uma pequena pausa. abaixa a cabeça. luz diminui. Quando ele levanta a cabeça, um foco abre em seu rosto e entra uma música tensa.

Marcos – Do diretor.

Volta a luz normal.

Juiz – A-háaaa!!! A culpa é do diretor.

 Abre-se um foco no diretor que se encontra sentado em uma outra cadeira. Some o foco em Marcos.

Diretor – Eu não tenho nada a ver com isso.
Juiz – Mas foi o próprio Marcos Resteler quem falou.

Diretor – Ele fala coisas sem pensar.

Juiz – Ele fala coisas sem pensar, ele atua sem poder... Então, a gente quer acabar com isso. Essa CPI do Ator Despreparado está servindo para apontar os culpados dessa abertura do mercado para jovens sem o mínimo talento. Porque se a gente não frear isso a tempo, logo veremos uma escola de interpretação com o nome de Paulo Zulu. E ainda iremos assistir a uma novela com um elenco inteiro composto por Ciganos Igor. Percebe o que o futuro nos reserva?
Diretor – Eu sei.
Juiz – E você, Daniel Carvalho, um diretor de renome, profissional competente, está sendo apontado como um dos culpados. Isso é lamentável!
Diretor – Mas, na verdade, a culpa não é minha. Eu fui obrigado a aceitar a presença de Marcos Resteler no elenco. Eu nem o conhecia. Me disseram que ele era modelo e superbatalhador, que decorava rápido, etc e tal...
Juiz – “Me disseram” é muito vago. Eu quero nomes.
Diretor – Tudo bem, tudo bem. O culpado é... (luz baixa. foco no rosto do diretor) o autor. Foi ele quem exigiu a presença desse rapaz no núcleo principal da novela. O personagem do amigo do protagonista foi escrito pelo autor.
Juiz – Eu não consigo entender isso. O Marcos Resteler é amigo do protagonista, mas nos últimos capítulos o protagonista não apareceu uma vez sequer, sendo que o amigo estava em todos os blocos, dialogando com feras da televisão. E o que é pior, gaguejando. Como o senhor explica isso?
Diretor – (grita) A culpa é do autor . Perguntem a ele.

Foco no autor que está sentado em outra cadeira.

Autor – Eu?!?! Claro, eu conheço o Marcos Resteler, mas acontece...
Juiz – Acontece o quê? O diretor disse que você exigiu a presença dele no elenco. Você escreveu o personagem. E esse mesmo personagem está se tornando praticamente o protagonista da novela. Como você, Agnaldo Braga Gomes, um autor respeitado no Brasil inteiro, aclamado pela crítica, premiado no exterior, comete um ato desse, totalmente criminoso? E o público, coitado, é quem sofre com uma atuação ruim, canastrona. Como o senhor explica isso?
Autor – Ele é bonito, quase um Allain Delon.

Murmúrios.

Juiz – Silêncio, por favor. Vamos ouvir o senhor Agnaldo Braga Gomes.
Autor – A beleza dele é encantadora. Eu pensei que poderia torná-lo um ator de sucesso. Eu pensei que o público poderia gostar de ver um rosto bonito como o dele na televisão. E hoje sei que só isso não basta.
Juiz – Só hoje o senhor percebeu isso?
Autor – Quer dizer, eu já sabia. Mas fingi não saber. Quis dar murros em ponta de faca. Exigi a presença do Marcos Resteler na minha novela. E fui muito criticado por isso. E estou sofrendo com a decisão que tomei.
Juiz – E por que ainda o mantém no elenco?
Autor – (pausa) Eu o amo!

Murmúrio mais intenso.

Juiz – Silêncio, silêncio!!! (marteladas) Não entendi o que o senhor disse.
Autor – Eu disse que eu o amo.

Marcos Resteler leva a mão ao rosto e abaixa a cabeça.

Juiz – Você o ama? Foi por amor? O senhor, por acaso, vive uma história de amor com ele? Vocês criaram laços de família, é isso?
Autor – A gente ‘tá junto há dois anos. E eu quis dar esse presente a ele. É um presente de aniversário, meu Deus! Que culpa tenho eu de amar o Marcos e querer agradá-lo?
Juiz – É isso, meus senhores. Tudo depende de Q. I. – Quem Indica. Mas estamos aqui para acabar com isso. Então, caro autor, você só será absolvido se voltar para casa e escrever um capítulo no qual o personagem de Marcos morre.
Autor – Nunca!!! Tudo menos isso. Não matarei o personagem que escrevi com tanto carinho para ele. Eu o amo!

Marcos chora emocionado.

Juiz – Então, só nos resta condená-lo... à pena de morte por ter cometido o crime de escalar um ator despreparado para a novela das oito.

Vozes altas.

Juiz – Levem-no para a forca.
Autor – (aos berros) Morrerei por amor, por amor.
Juiz – Os outros acusados podem se retirar.
Diretor – (gritando) CORTA!!!

Todos olham assustados.

Diretor – (sem graça) Desculpem. Força do hábito.
Juiz – (olhando com reprovação para o diretor) Sessão encerrada. E, pelo amor de Deus, sumam com esse ator da minha frente.

FIM