Vamos começar a nossa semana com um texto chamado Os Acessíveis. É um texto que escrevi em 2003 que reflete, com muito bom humor, sobre as dificuldades de se relacionar amorosamente com alguém, já que a vida se tornou um abismo onde o tempo é escasso e um beijo é algo raro. Espero que vocês se deliciem com um dia na vida de Penélope e Hans.
OS ACESSÍVEIS - de Raul Franco
Início da cena: barulho de carros passando, buzinas, conversas, enfim, sons de rua em geral. mulher se encontra sentada, muito bem vestida, apreensiva, à espera de alguém. logo, vemos entrar um homem de terno e gravata, apressado.
Hans - É...
Penélope - Você deve ser o Hans.
Hans - Penélope?
Penélope - Eu pensei que você não vinha.
Hans - Eu tentei vir o mais rápido.
Penélope - Atrasou-se?
Hans - É.
Penélope - Engarrafamento?
Hans - Na Rio Branco.
Penélope - Acontece.
Hans - (olhando no relógio) Eu atrasei muito?
Penélope - Dois minutos e meio. Pra quem não tem tempo é muito.
Hans - Dois minutos e meio?! Tudo isso.
Penélope - Bem, é melhor a gente ir logo ao assunto. (abrindo a sua pasta) Você trouxe?
Hans - Trouxe.
Penélope - Assim a gente ganha tempo.
(homem também abre a sua pasta de executivo. de repente, os dois param e se olham e falam ao mesmo tempo)
Os dois - Sabia que você...
(devido a coincidência, eles soltam um ligeiro sorriso)
Penélope - Pode falar.
Hans - Não. Fala você.
Penélope - Não. Fala você.
Hans - Fala você.
Penélope - Fala você.
Hans - Você.
Penélope - Você.
Os dois - Vo... (olham no relógio) Olha o tempo.
Penélope - Eu falo, então. É que... O que eu ia falar mesmo? Ih, esqueci... e não tenho tempo de lembrar.
Hans - Eu lembro, eu falo. Você é diferente do que eu imaginava.
Penélope - (preocupada) Decepcionado?
Hans - Não!!! Você é muito melhor do que eu imaginava.
Penélope - (abrindo um sorriso) É verdade.
Hans - (pensando que ela também acha isso dele) Você também acha?
Penélope - Eu também acho... que a maioria das pessoas me imagina inferior ao que eu sou realmente. (começa a ri, sozinha) Isso é bom, não?
Hans - (decepcionado) Muito.
Penélope - Ah, lembrei. Eu ia falar o mesmo de você.
Hans - (abrindo sorriso) Então, você também se surpreendeu?
Penélope - Me surpreendi e fico feliz. É que são tantas frustrações...
Hans - O quê?
Penélope - Nada. Nada, eu só quis dizer que é a minha primeira vez que... (faz um gesto)
Hans - Marca um encontro com alguém que você nem conhece?
Penélope - Isso. É tão esquisito que eu nem sei como me portar. Faz tempo que... que... sabe como é? Que eu estou sozinha. Quer dizer, faz tempo que eu não tenho tempo. E por não ter tempo, às vezes, fico teclando mesmo, procurando pessoas interessantes. E por não querer perder mais tempo... quer dizer, chega uma hora em que você tem que dar uma trégua no trabalho e encontrar alguém com quem você possa... entende? Eu pensei nisso e percebi que se eu continuar correndo, vou acabar ficando sozinha, e chega um momento que você precisa ter alguém. (interrompendo) Eu nem acredito que eu falei tudo isso.
Hans - Então, que tal se a gente se adiantar.
Penélope - É, afinal a gente veio aqui pra isso.
(ela mexe na bolsa e ele mexe na pasta. de repente, param. olham-se)
Penélope - A gente só trocou algumas informações e está aqui em pleno Centro da cidade nesse sol, nesse calor... isso não é engraçado?
Hans - O mais engraçado é que a gente não sabe nada um do outro.
Penélope - Às vezes, é melhor. O pior é a gente passar tanto tempo com uma pessoa e descobrir que tudo aquilo que a gente soube dela era melhor não ter sabido. Pra poupar a relação.
(Ela mexe na bolsa, ele mexe na sua pasta. de repente, tiram um papel de dentro ao mesmo tempo)
Os dois - Aqui está.
(olham-se meio inseguros)
Penélope - Este é o meu.
Hans - Aqui está o meu.
(Penélope olha rápido para o papel. Hans olha para ela e pro papel que está com ela)
Penélope - Legal. Que coisa, né? A gente combinou de se encontrar pra isso (mostra o papel). E já estamos batendo um papo.
Hans - Já falamos muito, né?
Penélope - Eu acabei me soltando
Hans - É.
Penélope - Isso é bom.
(fica um silêncio breve, os dois se olhando. de repente, Penélope corta)
Penélope - Bem, Hans, já estamos de posse dos nossos currículos. E já podemos nos avaliar. Pra ver se um serve pro outro. Porque se não servir a gente nem perde tempo de dar o primeiro beijo, não é?
Hans - Essa sua idéia dos currículos é genial. Todo relacionamento poderia começar com a entrega do currículo pessoal. Pra especificar o nosso histórico amoroso. Eu achei isso bem interessante. Vou adotar a sua idéia, se é que você me permite.
Penélope - Permito. Sem problema. Agora, acho que devo ir, porque eu preciso avaliar os currículos.
Hans - Currículos?
Penélope - É. Eu me esqueci de avisar, mas eu já estou com uns dez currículos na minha bolsa de outras pessoas e preciso avaliar. Espero que você não se importe de concorrer com outras pessoas.
Hans - Não. Sem problema. Na concorrência, sempre vence o melhor.
Penélope - Às vezes, o mais disponível, o mais acessível. Ó, eu sei que isso não é correto, mas vê só... (mexe na bolsa e pega alguns currículos) Esse aqui! O currículo de um cara chamado Arnaldo. Vê o que ele diz.
(Hans pega o currículo do Arnaldo)
Penélope - Ele foi casado seis vezes. A última mulher morreu num acidente de carro. Ele bebe uísque importado. Tem saído para boates, onde se distrai com um som dançante. Fuma Malboro, três maços por dia. E tem seis filhos “amorosos em busca de uma madrasta simpática e profundamente delicada e atenciosa com o lar” - palavras dele, ‘tá escrito aí. Primeiro: eu detesto homens que fumem e detesto sons dançantes. E esse negócio de filhos amorosos em busca de uma madrasta sei-lá-mais-o-quê é o fim da picada. Em suma, descartado. (rasga o currículo e põe em cima do banco)
(Hans fica parado, olhando pra ela)
Penélope - Mas o seu eu vi rapidamente e diz que você gosta de Agatha Christie. Eu também adoro. Já é um passo. Também diz que você abre a porta do carro pra mulher entrar. Acho isso muito importante, sabia? Com certeza, vou ler o seu com carinho.
Hans - Espero agradá-la. Não quero ser um currículo rasgado em praça pública.
Penélope - O que é isso?! Não se preocupe. Pra te consolar, fique sabendo que os outros currículos foram mandados para a minha caixa-postal. Você foi o único com quem eu marquei encontro, assim, face a face.
Hans - Eu também vou ler o seu com carinho. (com o currículo na mão. olha pra o currículo)
Penélope - E a gente se liga pra discutir os itens do currículo, tá bom?
Hans - Espera. Você diz aqui que “adora sentir um corpo de uma mulher sarada todo molhado, depois da musculação”.
(Penélope pega o currículo da mão de Hans)
Penélope - O quê?
Hans - ‘Tá escrito aí.
Penélope - Ah, esse currículo é da Marcela.
Hans - Marcela?! Eu nem reparei no nome. Quem é Marcela?
Penélope - É... Olha, eu falei que recebi muitos currículos, né? Quer dizer, eu tenho uns dez currículos em minha mão. E algumas mulheres também me mandaram. Não custa nada dar uma olhada. Chega um momento em que a gente tem que atirar pra tudo que é lado, não é mesmo?
Hans - (concluindo) É.
Penélope - E eu gostei dessa parte do “corpo sarado molhado”. Deve ser interessante.
(silêncio)
Hans - E o seu currículo?
Penélope - Ah, vou pegar. (Abre a bolsa. procura) Eu não acredito. Eu não trouxe o meu currículo. Ah, Hans, mil perdões. É que no corre-corre, sabe como é. E agora?
Hans - Ah, quando a gente marcar o segundo encontro pra discutir o meu currículo, você traz o seu.
Penélope - (cortando) Não. Vai ficar um papo pela metade. Eu vou falar de você, do que consta no seu currículo e você não vai falar nada de mim? Não. A gente tem que avançar no segundo encontro. Faz o seguinte: eu te mando por e-mail, pode ser?
Hans - Ótimo. Eu vou esperar.
Penélope - Desculpa o vacilo, Hans.
Hans - Não grila.
Penélope - Agora deixa eu ir que já tô atrasada. Como a gente acabou desenvolvendo este diálogo, eu vou ter que ficar sem almoçar, mas tudo bem. Perde um pouquinho de tempo aqui mas ganha um pouquinho de tempo lá. E de quebra, faz-se um dietinha forçada. (sorri meio que forçado) Tchau.
Hans - Tchau.
(os dois se viram e caminham apressados. Hans pára, se vira, e chama Penélope)
Hans - Penélope, espera. Como eu não vou poder ver e-mails hoje, quer dizer, eu nem sei se você pensaria em mandar o currículo hoje...
Penélope - Eu ia mandar.
Hans - Pois é, mas só poderei conferir depois. Tô com problema no monitor. Mas ele voltará do conserto amanhã. Então, já que você falou que está com - dez currículos, não é isso?
(Penélope balança a cabeça positivamente)
Hans - Então, já que estamos na mesma, ou seja, na procura, quem sabe você não poderia me ceder uns três currículos pra que eu possa realizar uma avaliação.
Penélope - Mas eu acho que só tenho o da Marcela de mulher aqui comigo. Mas também o histórico amoroso dela é com mulher e o amor pretendido é com mulher. Acho que não vai ser útil.
Hans - Mas você tem de homem aí, não tem?
(ela olha, estranhando)
Penélope - Tenho, sim. Acho que uns sete.
Hans - Seria pedir muito para ler uns três, mais ou menos.
Penélope - Você?
Hans - É, eu. Acho que também posso atirar pra tudo que é lado. Espero acertar em algum lugar.
(Penélope entrega os currículos pra ele)
Penélope - A gente sempre acerta. Pelo menos, dribla-se a solidão. Leva esses três. Pode interessar.
Hans - Obrigado. Mas não deixa de mandar o seu.
Penélope - Mandarei. Porque eu gostei de você.
Hans - Eu também gostei. Espero que tenhamos tempos compatíveis.
Penélope - Tchau.
Hans - Tchau.
(repetem a mesma caminhada. param. viram-se e caminham apressados em direção ao outro)
Hans - Você disse que o tempo que conversou comigo foi o tempo do seu almoço?
Penélope - Foi.
Hans - Depois do almoço sempre tem uma sobremesa.
Penélope - Sempre.
Hans - Pudim?
Penélope - Mousse.
( Hans se aproxima do corpo de Penélope. toca a sua cintura e vai se aproximando da boca de Penélope. barulho de badaladas de relógio. os dois começam a falar rápido e a caminhar, indo embora)
Penélope - Não temos tempo pra isso.
Hans - Nunca temos.
Penélope - Quem sabe na semana que vem.
Hans - E se você tiver de dieta e não quiser sobremesa?
Penélope - Fico com o cafezinho. Boa sorte nos currículos.
Hans - Você não se importa de competir?
Penélope - Sempre vence o melhor.
Hans - Ou os mais acessíveis.
Penélope - Tchau.
Hans - Tchau.
(os dois saem apressados)
FIM