Trecho do espetáculo Quando o amor é um pastel de carne para corações vegetarianos, de Raul Franco
O JANTAR (Até que uma canção nos una)
Os dois chegam ao restaurante.
WAGNER -Vera, os seus olhos... os seus olhos... Eles brilham, ao mesmo tempo, são brilhosos e brilhantes.
VERA - (sem graça) Ai, Wagner, pára.
WAGNER -Ficou vermelha, né?
VERA - Claro.
WAGNER -Gostosa.
VERA - Hã?!
WAGNER - A comida daqui... é muito gostosa...
VERA - Ah, bom!
WAGNER -... também.
VERA - (mudando de assunto) Este restaurante é muito bonito.
WAGNER -Escolhi a dedo. Afinal, é o nosso primeiro jantar.
VERA - Sabe, Wagner, eu estou gostando de te conhecer?
WAGNER - A recíproca é verdadeira. Então, que tal se você me falar um pouco de você?
VERA - Ah, sei lá o que eu posso falar sobre mim. O que você quer saber?
WAGNER -Tudo.
VERA - Tudo?
WAGNER -Tudo o que você quiser falar.
VERA - Por que você não começa? Aí, eu me sinto inspirada e vou poder falar também.
WAGNER -Ah, eu perguntei primeiro.
VERA - Mas você sabe se expressar melhor do que eu.
WAGNER -Que é isso?! É só aparência.
VERA - Então?
WAGNER -Bem, já que é assim, vou falar de mim. Eu levo uma vida normal, regrada, com poucas horas de lazer, afinal, trabalho tenho de sobra.
VERA - E o que você faz nas horas de lazer?
WAGNER -Eu gosto... eu gosto de ler.
VERA - Hum, que interessante! E lê o quê?
WAGNER -Clássicos. Gosto de clássicos. Machado de Assis, Baudelaire, Hemingway...
VERA - E música?
WAGNER - O que é que tem?
VERA - Você gosta de quê?
WAGNER -Clássica.
VERA - Nossa, você é um homem clássico, então?
WAGNER – Classicamente... ou melhor, certamente. Gosto de Vivaldi. Ele me inebria.
VERA - Gosto de Bach.
WAGNER -Ah, um barzinho ao ar livre, beber alguma coisa...?
VERA - Não. Bach, o compositor.
WAGNER -Ah, Bach. Por um instante pensei que você tivesse dito bar. Perdoe-me a minha falta de atenção, é que me envolvi com esse momento inebriante.
VERA - Como se Vivaldi estivesse tocando.
WAGNER -Por quê?
VERA - Você disse que Vivaldi inebria você.
WAGNER -Exatamente, Vivaldi me inebria.
VERA - Sabe, com essa conversa toda, me deu vontade de ouvir um jazz.
WAGNER – Coltrane?
VERA - Coltrane! Nossa, você capta mesmo pensamentos.
WAGNER -Dependendo da ocasião.
VERA - Então, que tal um Coltrane?
WAGNER -Com um bom vinho chileno.
VERA - Bravo pela combinação.
WAGNER -Garçom, a conta, por favor.
VERA - Vamos dividir?
WAGNER -Que é isso? Quem convida é quem paga.
O CLIMA
VERA - Então, depois de ouvirmos muito Coltrane, depois que semanas se passaram e também outros jantares temperados com molho de conversas de bom paladar...
WAGNER -Estamos mais uma vez sentados, apreciando o desenvolvimento de um romance, como um acorde de Vivaldi.
OUTRO JANTAR
WAGNER -Vera, é sempre um prazer jantar com você.
VERA - A recíproca é verdadeira, meu amor.
WAGNER -Que tal, gostou do disco de Bocceli que lhe dei de presente?
VERA - De muito bom gosto. E você, já leu o livro de Garcia Marques que deixei em sua casa?
WAGNER -Naquela noite em que curtimos Coltrane pela vigésima vez? Claro. Um livro muito profundo, de grande sensibilidade. Realmente ele é um grande autor.
VERA - Wagner, será que eu posso lhe fazer uma pergunta?
WAGNER -Claro, afinal já existe uma bonita relação entre nós.
VERA - Você gosta mesmo de mim?
WAGNER -Que pergunta é essa?
VERA - Responde, por favor.
WAGNER -Claro, Vera.
VERA - Nada seria capaz de abalar o seu gostar?
WAGNER – Como?
VERA - Por exemplo, se você descobrisse algo sobre mim que o desagradasse, o que aconteceria?
WAGNER -Como assim?
VERA - Como “como assim”, Wagner? Algo!
WAGNER -Seria bom se você pudesse dizer logo, eu estou ficando nervoso.
VERA - Você ainda não conseguiu perceber?
WAGNER - O quê?
VERA - Olha, Wagner, eu vou ser bem sincera com você, principalmente porque eu já me sinto envolvida nessa relação. Espero que você entenda o meu lado, que você me perdoe.
WAGNER -Eu estou suando frio. Diz logo o que é, Vera? Você me escondeu alguma coisa?
VERA - Pode ser.
WAGNER -Como pode ser? Ou escondeu ou não.
VERA - Tá bom. Escondi. Sei que a gente já conversou bastante, já trocou idéias. Mas eu não posso continuar com essa farsa.
WAGNER -Que farsa?
(Silêncio).
VERA - Eu não entendo nada de música clássica. Só fingi entender porque você parecia falar tão entusiasmado sobre isso, e eu não queria decepcioná-lo, eu queria conquistá-lo, e acho que, de repente, acabei por me envolver demais nessa história, assumindo gostos que, na verdade, nunca tive...
WAGNER -Espera. Você não gosta de música clássica?
VERA - Eu não entendo muito bem aquilo, acho muito esquisito. Prefiro uma outra música que penetre mais fundo no meu ouvido.
WAGNER - Mas quando eu conheci você, eu vi uns discos de clássico na sua casa...
VERA - Era da Cibele, na verdade.
(Wagner fica mudo)
VERA - Eu sei que, de repente, você pode estar dizendo: Que idiota esta mulher. Que burra esta mulher. Que ignorante esta mulher.
(Wagner começa a rir)
VERA - O que é isso, Wagner? Você tá rindo de mim, é? Tá bom, desculpa, mas eu vou me embora, não vou suportar isso.
(Wagner segura Vera pelas mãos)
WAGNER -Espera. Eu vou explicar. Senta aí, por favor.
(Vera senta)
WAGNER -Eu achei que você gostava de música clássica. Quando olhei pra você a primeira vez, lá no escritório, pensei: Esta mulher é clássica! E, como já disse, quando fui lá no seu apartamento e vi os discos de Vivaldi, Mozart, Beethoven, percebi que realmente você era uma mulher clássica.
VERA - Está decepcionado, não?
WAGNER -Não.
VERA - Não?
WAGNER -Eu também não entendendo muito bem de música clássica.
VERA - O quê?
WAGNER -É uma música que também soa estranho no meu ouvido.
VERA - Wagner, você mentiu pra mim?
WAGNER -Espera aí, você também mentiu.
VERA - Você me deu um disco de Bocceli.
WAGNER -Você não deve ter gostado.
VERA - É que, sinceramente, parece que ele está cantando o tempo todo com dor de barriga. Aquela voz toda desesperada...
WAGNER -Você não gostou, né? Dá pra Cibele. Ela vai adorar.
VERA - Com certeza.
(Os dois começam a rir)
WAGNER -Já que estamos leves, eu também vou fazer uma revelação. Eu nunca li clássicos. Não tenho capacidade de entender Machado de Assis, tampouco Garcia Marques.
VERA - Não? Você falou de uma maneira tão eloqüente que eu disse: Esse cara conhece.
WAGNER -Eu fui muito em bienais e ficava ouvindo o papo das pessoas. Aprendi a improvisar.
VERA - (brincando) Seu cara de pau!
WAGNER -(irônico) Olha o respeito! São anos de observação atenta dos intelectuais e também dos pseudo-intelectuais. É um estudo apurado, minha filha.
VERA - Quando você falou desses autores, eu me senti uma burra total e pensei: O que é que eu vou conversar com esse homem? Então, resolvi pular para o assunto música, e heis que você me vem com Vivaldi. Foi um tapa na minha cara de novo, né? Também tive que improvisar, levando em conta as conversas que eu ouvia da Cibele.
WAGNER -Aquele disco de Coltrane não era seu, né?
VERA - Da Cibele.
WAGNER -Essa Cibele deve ser uma chata.
VERA - Mas você conhecia Coltrane?
WAGNER -Que nada. Ouvi aquele dia em sua casa. Gravei o nome e apliquei.
VERA - Então, na verdade, o que você ouve?
WAGNER -Agora é você que vai me responder primeiro, bonitinha?
VERA - Ah, não, Wagner.
WAGNER -Eu tinha que arrumar uma Bíblia também, pra você pôr a mão em cima e eu ter certeza de que você não mentirá pra mim.
VERA - Eu não vou mentir, eu prometo.
WAGNER -Faz o seguinte, então. Me fala dos seus ídolos de antigamente.
VERA - Ah, Wagner, voltar no tempo e lembrar dos meus gostos musicais antigos?
WAGNER -Exatamente, senhorita. Esse vai ser o jogo.
VERA - Tá bom. Promete que não conta pra ninguém?
WAGNER -Palavra de escoteiro.
VERA - Eu era louca... não vale rir de mim, hein? Eu era louca pela Rosana.
(Wagner começa a rir )
WAGNER - A Rosana. (canta) “Como uma deusa”. É forte, hein?
VERA - Tá vendo, você tá rindo. Então, agora, fala você.
WAGNER -Vou ter que falar mesmo?
VERA - Lógico.
WAGNER -Quando eu era criança, bem pequeno mesmo, quando a gente não tem nada na cabeça...
VERA - Não justifica.
WAGNER -Tá bom. O meu ídolo era o Sidney Magal.
(Vera começa a rir)
VERA - E você ainda teve coragem de rir da minha Rosana. (canta) “Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar...”
WAGNER -Ah, o Sidney Magal era o máximo!
VERA - Não vem me dizer que você também gostava do Menudo.
WAGNER - O Menudo! Agora que você vai rir. Eu tinha um fã-clube do Menudo. “Não se reprima” era o nome.
VERA - Olha, Wagner, você passou dos limites. Se eu não tivesse ainda passado a noite com você, eu ia dizer que você era “viado”.
WAGNER -Que “viado” o quê, menina! Era um fã-clube. E eu era cover do Roby.
VERA - Ah, Wagner, que bom podermos falar a verdade um pro outro, né?
WAGNER -Vamos falar de nós dois agora.
VERA - Ah, eu já me sinto mais Vera. Eu tava me sentindo tão esquisita. Sabe, que nesse momento eu seria capaz de ir para um pagodão e dançar a noite inteira?
WAGNER -São dois, então.
VERA - Mas me fala o que você queria falar.
WAGNER -Antes, deixa eu chamar o garçom.
VERA - Por quê? Já vamos pagar a conta?
WAGNER -É uma surpresa.
VERA - Surpresa?
Wagner chama o garçom e diz um segredo no seu ouvido. De repente, cessa a música clássica
VERA - Ah, Wagner, o que é que vai acontecer?
WAGNER -Deixa eu pegar nas tuas mãos. “Diz pra mim se é você esse alguém que eu tanto quero”.
VERA - Eu já ouvi isso, Wagner.
WAGNER -É Leandro e Leonardo, meu amor.
VERA - Lindo!
Música “Doce mistério” entra ao fundo.
VERA - Wagner, olha a música.
WAGNER - Era essa a surpresa.
VERA - Ah, Wagner , eu ainda não tava me sentindo à vontade para dizer o que vou lhe dizer...
WAGNER - Diz... pra mim.
VERA - Eu te amo!
WAGNER - Poxa. Eu também estou com vontade de lhe dizer isso.
VERA - Então diz... pra mim.
WAGNER - Eu te amo.
VERA - Ai, Wagner .
Wagner a toma nos braços. Aumenta a música. Faz uma menção de que vai beijá-la. Mas a gira, deixando-a cair para o seu extremo.
FIM
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