A cena começa com um mix de quatro ou
cinco músicas de axé e algum som de algazarra para dar o clima da micareta.
Casal dança empolgado. Mas a partir da quarta música vê-se que a mulher
continua sorrindo e o homem já demonstra um certo desconforto. Depois eles dão
uma pausa para tomar uma água de coco.
Mulher – Que delícia, amor!
Homem – A água?
Mulher – Não. Nós dois
curtindo mais uma micareta juntos.
Homem – Ô...
Mulher – Essa é a quinta,
amor! Cê tem idéia disso?
Homem – Agora sim.
Mulher
– Nem acreditei quando a gente começou a namorar e eu te convidei pra ir numa
micareta comigo. Você na mesma hora topou. E foi lindo, amor! Você pulando que
nem um pião desgovernado e eu berrando que nem um trombone desafinado. (gargalha de modo eufórico) O Chiclete
com Banana tocando e a gente no maior clima “love story”, amassados no meio da
multidão. E acabamos caindo no meio daquela galera eufórica. Mas nem nos
importamos. Levantamos e fomos atrás do trio, bebendo smirnoff ice. Olha que
coisa!
Homem
– Que coisa mesmo!
Mulher
– E hoje é a nossa micareta de número cinco. E quase que a gente perde a
promoção dos abadás. Já pensou? Eu nem titubeei, saquei o cartão de crédito e
comprei os nossos abadás por 150 reais.
Homem – 150 reais?!
Mulher – Cada um.
Homem – Mas você não me falou
isso!
Mulher – Uma pechincha, amor.
Depois a gente acerta. E quer saber, tem uma hora que a gente tem que ligar o
foda-se porque o que vale é a alegria.
(Entra uma música muito animada e a mulher
sai pulando. Homem vai atrás, pulando com a cara séria. A mulher por outro
lado, fecha os olhos e berra os versos da canção. Está na cara que ela está se
divertindo mais do que ele. De repente, ela pára. A música fica de fundo)
Mulher – Ai, já estou meio
cansada!
Homem – Eu também!
Mulher – Isso cansa, né?
Homem – Micareta?
Mulher
– Não. Micareta não me cansa nunca! Eu quis dizer que eu estou cansada agora de
tanto pular. A gente tá há quatro horas aqui, pulando sem parar.
Homem – Caraca, já se passou
tudo isso? Quatro horas com a gente pulando?
Mulher
– E é só o primeiro bloco. Ainda tem mais 3 e o encerramento com o trio da
Veveta. Olha, se eu der uma paradinha rápida, juro que agüento mais quatro
horas.
Homem – Mais quatro horas
disso?! Olha, Lúcia, espera um pouco.
Mulher – O que foi?
Homem – Eu preciso te dizer
uma coisa!
Mulher – Que coisa?
Homem – É que...
M – Não vem me dizer que você
quer voltar pra casa? Palhaçada, né?
Homem – Não. Quer dizer... é
que eu...
Mulher
– Hello, amor! Esses abadás custaram muito din-din. Entrei no meu limite por
causa desses abadás. Então, a gente tem que aproveitar até a última gota de
suor.
Homem – É justamente isso!
Mulher – Isso o quê?
Homem – Eu não quero mais
gastar nenhum suor com micaretas.
(Cessa a música)
Mulher – Como assim?
Homem – Olha, eu preciso te
confessar uma coisa: eu odeio micareta.
Mulher
– Amor, cê tá passando mal. É o calor, né? Ah, já sei, tá precisando de (canta)
“água mineral, água mineral, do candeal, você vai ficar legal”. Vou pegar uma
água.
Homem – (segurando a mulher pelo braço) Pára com isso, Lúcia. Eu tô falando
sério.
Mulher
– Como você não gosta de micareta, Afonso? Tá me tirando! Essa é a nossa quinta
e a gente sempre pulou junto. Chegamos a ganhar a faixa de casal mais animado
do carnaval da Bahia de 2008. Um feito na nossa vida!
Homem
– Não me lembra isso! Eu não queria te magoar, te contrariar. E quando a gente
tá apaixonado a gente comete essas loucuras.
Mulher – Peraí! Stop now! Micareta
não é loucura!
Homem
– Eu não agüento mais isso, Lúcia, pelo-amor-de-Deus. Esse clima de alegria
constante, de eterna festa. Nunca entendi como as pessoas podem ser tão felizes,
pulando 4, 8 horas seguidas, cantando versos de canções pueris. (canta) “Eu quero mais é beijar na boca,
eu quero mais é beijar na boca”.
Mulher – Eu não tô
acreditando Afonso! Você não quer mais?
Homem – Beijar na boca?
Mulher – Não! Curtir
micaretas comigo.
Homem
– Há muito tempo eu queria te dizer isso, Lúcia: detesto micareta com todas as
minha forças. Eu sou fã de Rolling Stones, porra. Prefiro o Mick Jagger
rebolando sessentão a ver aquele cara do Chiclete com Banana cantando: “Cara,
caramba, cara, caraô, vem viver o verão, vem curtir salvador”. E não quero
curtir salvador, muito menos com esse cara azucrinando o meu ouvindo com esses
versos pobres. Quer dizer, são mais que pobres, são versos indigentes. (Aos poucos a mulher vai mudando a expressão,
como se cada frase dele fosse um terremoto emocional no seu coração). Só a
bandana desse cara tem 50 anos. Imagina ele! Olha, desculpa, mas hoje eu tô
desabafando. Não posso compreender essas pessoas insanas. Pessoas que ainda
estão descobrindo as vogais: aê, aê, aê / ê, ê, ê/ ôôôôôôô”. E esse fedor de
mijo insuportável? Como alguém agüenta isso?
Mlher
– (quase chorando) Não fala assim. Eu
amo micareta, tá? Micareta é minha vida! E você foi muito falso me fazendo acreditar
que gostava de micareta, seu pinóquio! E eu boba, acreditando que tinha
encontrado minha alma gêmea. Isso é para eu aprender!
Homem
– Olha, Lúcia, por estar gamadão em você, eu fiz esse sacrifício, mas não posso
mais conviver com essa mentira. Fui desonesto, fui, mas por uma boa causa. E
essa é a quinta vez que eu me sinto um peixe fora d’água. Isso pode me dar uma
úlcera!
Mulher – Não vou deixar você
destruir a minha micareta.
Homem
– Eu quero ficar muito com você. Mas se você me ama de verdade você vai ter que
optar: ou eu ou a porra dessa micareta.
Mulher
– Afonso, sacanagem você querer acabar com minha festa! E pára de me empurrar contra a corda.
Homem – Parede!
Mulher – Hã?
Homem
– A gente diz: “contra a parede”. Empurrar contra a parede, essa é a expressão!
Mulher
– Parede, corda, não me importa. O que sei é que eu amo micareta. E há muitos
anos sou freqüentadora assídua de micaretas. Ganhei um certificado de mulher-micareteira
que mais micaretas foi num ano. Você sabe o que isso significa? Foi um momento
de glória na minha vida. Então, como posso largar essa coisa que sempre me
encheu de alegria? Desculpa, mas não posso.
Homem – Lúcia, micareta é que
nem chupeta. Até uma certa idade a gente entende, depois fica constrangedor.
Mulher
– Quer saber, Afonso. Eu não posso ficar com você se você detesta micareta. E
se você detesta micareta, com certeza você não pode ser minha alma gêmea. (começa a tocar a música de Ivo Pessoa: Uma
vez mais – tema da novela alma-gêmea). Então, acho que cada um deve seguir
o seu caminho. E atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Eu vou. E
quer saber: você, pra mim, morreu! E saiba mais ainda, Afonso, que numa
micareta eu tenho 80% de chances de encontrar alguém melhor que você. Adeus porque
não vou deixar ninguém destruir uma micareta que está apenas começando. (seríssima) Alaô, alaô, mesmo com dor, eu
vou me embora pra Salvador! (sai)
Afonso fica parado, sem acreditar na
decisão da Lúcia.
Homem
– Fui trocado por uma micareta, essa festinha barata de pessoas insanas, suadas
e sem nada na cabeça. Como é que eu pude aguentar cinco micaretas sem me
rebelar? Por pouco eu pensei que ia ser alistado. E a Lúcia colecionando esses
abadás horrorosos. E o que são os abadás? Um pedaço de pano, normalmente
colorido, abóbora, azul, verde, e tudo muito fluorescente. Pra quê? Pra
sinalizar que você é mais um idiota no meio da multidão.
Voz
em Off: E agora, galera animada! Pra tirar de vez o pé do chão, Ivete Sangalo e
Cláudia Leite dividindo o mesmo trio. Aplausos pra elas!
Homem
– E ainda por cima essas cantoras baianas estão dando cria! Estamos perdidos!
Afonso tenta ir embora e aparece outra
mulher, dançando. Ele fica boquiaberto com a beleza da mulher. De repente, ela
vai até ele.
Mulher
2 – Oi?
Homem
– Oi.
Mulher
2 – Beleza?
Homem
– Beleza pura!
Mulher
2 – Será que você tem um fogo pra acender o meu cigarro?
Homem
– Desculpa, mas eu não fumo.
Mulher
2 – Nem eu. Mas numa micareta a gente faz coisas que nunca pensamos em fazer.
Homem
– Ô... eu que o diga!
Mulher
2 – De qualquer forma, valeu.
Homem
– Espera. Tá sozinha?
Mulher
2 – Vim com uma galera aí, mas a gente acabou se perdendo. Ah, depois a gente
se encontra perto da corda. Aliás, você é bem parecido com aquele cordeiro ali.
(aponta para um ponto na platéia). É
seu irmão? (risos)
Homem
– Não. E, graças a Deus, também não sou cordeiro. Aliás, que coisa bizarra, né?
O cordeiro, o cara que segura corda! Função bosta, né? (os dois riem) Olha, não é uma cantada, mas tenho que dizer que você
é linda!
Mulher
2 – Hum! Obrigada. Mas não sou tão linda quanto a Cláudia Leite. Você gosta
dela?
Homem
– Da Cláudia Leite?
Mulher
2 – Sim.
Homem
– É... (olha pro lado e disfarça)
Amo, amo Cláudia Leite.
Mulher
2 – A mulher teve filho e manteve o corpão!
Homem
– Ela é demais! Dá-lhe, Cláudia! (demonstra
uma animação, dançando com sorriso na cara, tentando se enturmar) Você
também deve ser fãzona da Cláudia Leite, né?
Mulher
2 – Detesto.
Homem
– (pára de dançar) Como?
Mulher
2 – Não gosto mesmo. Acho forçada!
Homem
– Ah, tá... é... às vezes, ela é forçada mesmo, concordo. (dança de novo) Então, você deve gostar da Ivete, né?
Mulher
2 – Detesto também!
Homem
– (ele pára de dançar) Peraí, mas
você tá numa micareta!
Mulher
2 – Pois é... É que tô fazendo um estudo antropológico sobre a “Micareta e o
processo alienatório como forma de suportar a dura realidade brasileira”. Eu
trabalho de conclusão para a faculdade de Ciências Sociais.
Homem
– (sem entender muito) Ah, tá!
Mulher
2 – Agora, desculpa, vou ter que ir, porque ainda tenho que coletar mais dados
para o meu estudo.
Homem
– Não quer tomar uma água de coco e trocar uma idéia? (ele olha de modo sedutor)
Mulher
2 – Tá me paquerando, é?
Homem
– É que eu achei interessante a idéia desse estudo! Quem sabe, a gente não
encontra umas afinidades aí. (ele toca no
braço dela, fazendo um carinho).
Mulher
2 – Desculpa mesmo, mas não é ético eu me envolver com o objeto de estudo. O
distanciamento garante a objetividade. E também não quero atrapalhar a sua
micareta! Beijos, fui! (sai)
Homem
– Atrapalhar a minha micareta? Eu mereço!
(sobe a música e a luz vai caindo. Afonso
olha para os lados com cara de tédio)
FIM
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